1.27.2012
Futura amiga,

Nunca gostei de que tentassem ler nas entrelinhas quando eu falava. Simplesmente porque fala não tem linha, você fala ou cala. O que capta entrelinha é o olho, não o ouvido. A entrelinha do meio sorriso, que pode ser triste, aquele meio sorriso resignado de quem não conseguiu alcançar a expectativa - sua ou alheia, a entrelinha dos franzidos, sejam eles no cenho, na testa, no canto da boca. Não sei, não sei, sempre desconfiei das entrelinhas. Acho que porque elas sempre são tão fáceis de ser mal interpretadas. A verdade é que aqui é o único lugar que gosto de praticar as entrelinhas. Já fui mal interpretada, mas não ligo, a mente interpreta de acordo com o que há nela. E mesmo que não te deixem acreditar, ela é livre - a mente.
É que hoje acordei assustada, mas assustada sem medo, então se é sem medo não é assustada? Tudo bem, acordei surpresa. Surpresa com o fato de que não dá para ser só, e de que esse fato implica em entrelinhas, bem ou mal interpretadas, e que é coisa da vida isso de não saber o que se quer dizer ou entender o que se ouviu. Vou tentar não ler nas suas entrelinhas, vou perguntar. Quem sabe assim os mal entendidos diminuem?
1.18.2012


Igraine,

Hoje é sexta-feira treze. Algumas pessoas acham que é dia de azar. Outras que é dia de sorte. Para mim é o teu dia, um dia místico. Simples assim. Consigo te ver fiando, olhando o horizonte sem realmente ver o que está lá, pois você está vendo o que está por vir - ou o que passou, ouvindo os sussuros do passado e do futuro.
Eu sempre procurei desculpas para o que você fazia. Às vezes era a idade, outras  vezes era a obediência ou a fé. Acho que sempre fui condescendente com você. E olha que normalmente eu não sou assim. Não olhe para mim com esse olhar enviezado. Eu te respeito, hoje posso dizer isso.
Sempre houve em mim essa simpatia que eu tentava explicar - eu gosto de explicar as coisas, inclusive e principalmente meus sentimentos. Via a menina que se casou para satisfazer a vontade da família e que estava traindo para satisfazer a vontade da mesma família e pensava "nossa como você é bobinha, Igraine". Nunca consegui antipatizar você. Tentei sim, quando te vi sendo uma mãe relapsa, um bibelô ao lado de Uther, uma Rainha Mãe apagada...
E eu vi você crescer, Igraine. Te julguei muitas vezes, afinal quem nunca julgou injustamente? Fico feliz de ter tido tempo de mudar meu julgamento, de ter ver por quem você é, de saber que por mais que parecesse, você não era uma bobinha manipulada. E parecia tanto...
Vou me repetir dizendo que sempre simpatizei contigo, mas não chegava a nada além disso, uma simpatia. Daquelas que temos por alguém que nós não destestamos, mas não fazemos questão de estar perto, daquelas que temos por bebês, mas não queremos ter trabalho com eles. E essa simpatia meio vazia durou até perto da sua morte.
Fico feliz por não ter te julgado daquela vez, quando você foi para o convento. Não me magoou, na verdade nem incomodou. Provavelmente porque eu sempre tive em mim que na verdade não importa a religião que a pessoa segue, desde que ela seja alguém verdadeiro. Eu sempre te achei verdadeira, Igraine. Com todas suas falhas, com todo seu amor, com todo seu sofrimento, você foi verdadeira, completa.
À beira da morte você falou exatamente o que eu penso, que a Deusa está acima de todas as religiões, as religiões aparecem e desaparecem, mas a Deusa pemanece.
Eu senti tua dor, Igraine, quando você falou que não tinha bebido cicuta, mas era como se tivesse bebido, e que o frio estava chegando a teu coração. Naquele momento, naquele último momento, eu te amei integralmente.
Amo tua memória.

Amor,

Rebeca

"Ela também é Grande rainha desta terra..."


Essa carta foi escrita sexta-feira passada, infelizmente não pude postar na data.
1.17.2012
É culpa dela...



Ela estava usando uma saia curtinha, meias arrastão e saltos agulhas. Sua maquiagem meio gótica estava levemente borrada por causa do suor gerado pelos pulos e giros que deu na pista de dança. Tinha bebido demais, mas estava valendo.
Ela estava voltando da escola, trajava uma saia jeans que chegava até abaixo dos joelhos, tinha cabelos longos e usava uma blusa com mangas e nenhuma transparência. Quem olhava de longe percebia que ela era evangélica, pois além da indumentária não tinha um traço de maquiagem no rosto.
Ela tinha trabalhado até tarde e estava saindo do escritório. Como era a secretária tinha que fechar a porta da sala do chefe, apagar a luz e trancar o escritório. Ela usava uma calça social preta, um tailler preto e seu cabelo estava preso num coque alto. Sua maquiagem era discreta e profissional.
Ela estava com dor de cabeça porque seu filhinho de seis meses não parou o dia todo e era madrugada quando ela conseguiu colocá-lo para dormir. Sua camisola puída e seu cabelo arrepiado não significavam nada, pois seu cansaço era maior que tudo aquilo.
Ela conheceu um carinha legal, sorridente, carinhoso e bonito.
Ela caminhava apressadamente para chegar em casa, pois o caminho era deserto.
Ela recebeu uma proposta de carona do chefe. Já era tarde. Por que não?
Ela deitou-se ao lado do marido, quase desmaiando de cansada.
Ela foi estuprada.
Ela foi estuprada.
Ela foi estuprada.
Ela foi estuprada.
Ela estava bêbada, vestida como uma vadia, se foi estuprada a culpa é dela.
Ela não devia andar sozinha à noite com esse perigo.
Ela não devia ter pegado carona sozinha com um homem, a responsabilidade é dela.
Ela tem obrigação de satisfazer o marido.

Não.
Não.
Não.
NÃO.
Por favor, mundo, só NÃO.


...Só que NÃO.
 

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